quarta-feira, 28 de maio de 2014

CANTIGAS DE AMIGOS

O soldado e a rosa do tempo
de Antonio Ventura

Poema publicado no livro O guardador de abismos 

Cantar para você, meu canto seco. Enquanto você dorme, eu me preparo para uma guerra. Sei que nem sempre meu canto é bonito, mas preciso cantar. Porque é noite em plena cidade; desgraçadamente é sempre noite. Não é pesada a minha armadura de soldado, nem o fuzil, nem minha imobilidade. Pesado é eu ficar aqui, esperando que o tempo passe, que a vida passe, enquanto minha guerra é diferente. Minha carcaça é leve, mas estou pesado como uma fera. E penso: — Estou sozinho como uma ilha no espaço, mas não preciso de ninguém. Nisso eu sou orgulhoso.

    Na frente do Tiro de Guerra, numa cidade fantástica, o camarada vai e volta, maquinalmente.
    — É bom ficar aí? Perguntam as duas moças que passam; são dois risinhos de ironia e ternura. À luz das lâmpadas, não parecem feias, mas bem razoáveis. Vão embora, mas voltam outra vez, agora silenciosas. Uma delas lança uma coisa no cimento, que caiu numa sombra. Talvez fosse uma bomba, pensamos. Mas era uma rosa pequena, ridícula. Então eu e meu camarada repartimos a rosa; coloquei uma pétala no peito, sob a armadura de soldado.
    Penso em você, meu amor, que não é uma rosa, mas não é ridícula, nem quando mente para fazer os outros felizes.

    Continua a noite e olhamos o relógio da torre. Fico aqui à espera, mas nada de extraordinário acontece: não é a chegada de nenhum rei, não matam nenhum presidente e não há ninguém para pôr fogo na cidade. E ninguém para me cuspir no rosto. Todos estão calmos esta noite, completamente razoáveis. Tenho sede e uma raiva enorme de depender de líquidos, pois tenho sempre a sede das feras.
    É noite e estou servindo à pátria. É noite e penso em fazer um poema para a América, mãe gentil, tão explorada, e penso:

América, minha pequena namorada
de ventre violentado,
minha amante milenar
que caiu nos braços de todos
que amaram sua riqueza,
sem nada pedir em troca;

E penso, ainda, com a pétala da rosa em meu peito:

Eu vejo você em cada operário que volta,
eu vejo você em seu sorriso triste
eu vejo você em seu colo brincado
de meninos trágicos, América, meu amor.

Tenho lágrimas nos olhos, minha carcaça é leve, mas estou pesado como uma fera. Penso em você, meu amor, e você não é América, e nem sempre pode ser gentil.
Miseravelmente somos pequenos ante os acontecimentos do mundo. É noite, o fuzil me cansa — mas nem isso tem tanta importância, pois num outro lugar é dia para homens diferentes, mas donos do mesmo abismo, do mesmo riso, do mesmo amor, e da mesma sede insaciável que sinto (esta sede horrível).
    Neste momento, os sargentos, a poucos metros, estão certamente ilhados nos braços de suas mulheres, em lençóis brancos. Penso que neste momento os homens, defensores fiéis da pátria e da democracia, se tornam crianças. Já não são tradicionais e austeros, mas bem razoáveis. Neste momento, também, milhares de palavras são escritas, e nem todas serão lidas. Estamos no mundo das palavras e homens viajam fantasticamente. Aviões imperialistas jogam bombas sobre populações indefesas, sobre criancinhas. Mas não tem importância, o mundo é bem razoável e nem todos estão em guerra. Existe um pouco de fome em cada país, garanto, mas em compensação todos são calmos, incapazes de fazer mal a um mosquito. Em algum lugar, certamente, alguém comete um crime que não será publicado. Pois todos cometem seu crime. E penso que o meu maior crime é esperar. Mas isto também não tem importância, pois amanhã ele virá raptar as criancinhas.
    Penso em você, meu amor. E você é pequena ante os acontecimentos do mundo, quase sem nenhuma importância, mas gosto de você, principalmente de seus cabelos que beijei numa tarde. Eles sempre me torturam.
    Minha armadura de soldado é leve, apenas um pouco incômoda, mas estou pesado como uma fera.
    Dois camaradas vêm sonâmbulos, ainda, para nos substituir, arrumando os cintos. Já não tenho o fuzil nas mãos, mas tenho comigo a sede enorme. Estamos alojados para o repouso, mas antes é preciso comer e beber. Meus companheiros falam besteiras o tempo todo, mas são mais felizes, pois não sabem ainda da última notícia. Mas nisto sou mais forte que eles, pois carrego todo o peso da fera, e não peço ajuda a ninguém. Todos nós somos cocacolizados e aliados na mesma sede, com a avidez das feras. Deito meu corpo no leito de soldado, com a pétala em meu peito. Não salvarei o mundo e nem o mundo me amará o suficiente. Estou horizontalmente acomodado, apenas com uma enorme sede, ilhado no espaço, mas não preciso de ninguém. Meu sono me bastará.

Nascemos para o amor
na arquitetura da lágrima e do sonho,
estamos perdidos no espaço
entre a essência do vegetal e o ferver dos metais.

Lá fora a torre da igreja é alta, mas não o bastante para encobrir as nuvens. Percebo que nada é tão alto ou tão profundo quanto nos parece. Até o amor, que nos pareceu tão grande hoje, amanhã ficará simples com a força do tempo. Por isso não amo a fragilidade da rosa. Mas, mesmo assim, hoje, cada um guarda consigo uma pétala no peito.


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