de Antonio Ventura
Poema publicado no livro O guardador de abismos
Cantar para você, meu canto
seco. Enquanto você dorme, eu me preparo para uma guerra. Sei que nem sempre
meu canto é bonito, mas preciso cantar. Porque é noite em plena cidade;
desgraçadamente é sempre noite. Não é pesada a minha armadura de soldado, nem o
fuzil, nem minha imobilidade. Pesado é eu ficar aqui, esperando que o tempo passe,
que a vida passe, enquanto minha guerra é diferente. Minha carcaça é leve, mas
estou pesado como uma fera. E penso: — Estou sozinho
como uma ilha no espaço, mas não preciso de ninguém. Nisso eu sou orgulhoso.
Na
frente do Tiro de Guerra, numa cidade fantástica, o camarada vai e volta,
maquinalmente.
—
É bom ficar aí? Perguntam as duas moças que passam; são dois risinhos de ironia
e ternura. À luz das lâmpadas, não parecem feias, mas bem razoáveis. Vão
embora, mas voltam outra vez, agora silenciosas. Uma delas lança uma coisa no
cimento, que caiu numa sombra. Talvez fosse uma bomba, pensamos. Mas era uma
rosa pequena, ridícula. Então eu e meu camarada repartimos a rosa; coloquei uma
pétala no peito, sob a armadura de soldado.
Penso
em você, meu amor, que não é uma rosa, mas não é ridícula, nem quando mente
para fazer os outros felizes.
Continua
a noite e olhamos o relógio da torre. Fico aqui à espera, mas nada de
extraordinário acontece: não é a chegada de nenhum rei, não matam nenhum presidente
e não há ninguém para pôr fogo na cidade. E ninguém para me cuspir no rosto.
Todos estão calmos esta noite, completamente razoáveis. Tenho sede e uma raiva
enorme de depender de líquidos, pois tenho sempre a sede das feras.
É
noite e estou servindo à pátria. É noite e penso em fazer um poema para a
América, mãe gentil, tão explorada, e penso:
América, minha pequena namorada
de ventre violentado,
minha amante milenar
que caiu nos braços de todos
que amaram sua riqueza,
sem
nada pedir em troca;
E penso, ainda, com a pétala da rosa em
meu peito:
Eu vejo você em cada operário que volta,
eu vejo você em seu sorriso triste
eu vejo você em seu colo brincado
de meninos trágicos, América, meu amor.
Tenho lágrimas nos olhos, minha carcaça
é leve, mas estou pesado como uma fera. Penso em você, meu amor, e você não é
América, e nem sempre pode ser gentil.
Miseravelmente somos pequenos ante os
acontecimentos do mundo. É noite, o fuzil me cansa — mas nem isso tem tanta
importância, pois num outro lugar é dia para homens diferentes, mas donos do
mesmo abismo, do mesmo riso, do mesmo amor, e da mesma sede insaciável que
sinto (esta sede horrível).
Neste
momento, os sargentos, a poucos metros, estão certamente ilhados nos braços de
suas mulheres, em lençóis brancos. Penso que neste momento os homens,
defensores fiéis da pátria e da democracia, se tornam crianças. Já não são
tradicionais e austeros, mas bem razoáveis. Neste momento, também, milhares de
palavras são escritas, e nem todas serão lidas. Estamos no mundo das palavras e
homens viajam fantasticamente. Aviões imperialistas jogam bombas sobre populações
indefesas, sobre criancinhas. Mas não tem importância, o mundo é bem razoável e
nem todos estão em guerra. Existe um pouco de fome em cada país, garanto, mas
em compensação todos são calmos, incapazes de fazer mal a um mosquito. Em algum
lugar, certamente, alguém comete um crime que não será publicado. Pois todos
cometem seu crime. E penso que o meu maior crime é esperar. Mas isto também não
tem importância, pois amanhã ele virá raptar as criancinhas.
Penso
em você, meu amor. E você é pequena ante os acontecimentos do mundo, quase sem
nenhuma importância, mas gosto de você, principalmente de seus cabelos que
beijei numa tarde. Eles sempre me torturam.
Minha
armadura de soldado é leve, apenas um pouco incômoda, mas estou pesado como uma
fera.
Dois
camaradas vêm sonâmbulos, ainda, para nos substituir, arrumando os cintos. Já
não tenho o fuzil nas mãos, mas tenho comigo a sede enorme. Estamos alojados
para o repouso, mas antes é preciso comer e beber. Meus companheiros falam
besteiras o tempo todo, mas são mais felizes, pois não sabem ainda da última
notícia. Mas nisto sou mais forte que eles, pois carrego todo o peso da fera, e
não peço ajuda a ninguém. Todos nós somos cocacolizados e aliados na mesma
sede, com a avidez das feras. Deito meu corpo no leito de soldado, com a pétala
em meu peito. Não salvarei o mundo e nem o mundo me amará o suficiente. Estou
horizontalmente acomodado, apenas com uma enorme sede, ilhado no espaço, mas não
preciso de ninguém. Meu sono me bastará.
Nascemos para o amor
na arquitetura da lágrima e do sonho,
estamos perdidos no espaço
entre a essência do vegetal e o ferver
dos metais.
Lá fora a torre da igreja é alta, mas
não o bastante para encobrir as nuvens. Percebo que nada é tão alto ou tão
profundo quanto nos parece. Até o amor, que nos pareceu tão grande hoje, amanhã
ficará simples com a força do tempo. Por isso não amo a fragilidade da rosa.
Mas, mesmo assim, hoje, cada um guarda consigo uma pétala no peito.
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