sexta-feira, 26 de setembro de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Conto do livro "A coleira no pescoço", editado pela Bertrand Brasil.

O outro lado da rua

Um pouco de frio já, quando o vento em sua roupa úmida: o frio pelo lado de dentro. Como foi isso? Não consegue unir os pontos – a realidade movediça. Continua a andar, mas sem saber em que direção, se há alguma. Precisa de uma lógica, entrar numa história coerente. Olha obtuso para os lados, parece que já passei por esta rua: a frente de azulejo da loja, o luminoso azul-vermelho piscando, o reator estragado, pois não pára de fazer um ruído irritante. Ouve passos, que secos retumbam em seu medo. Precisa saber de quem são, a esta hora da noite, só os dois num bairro perdido da cidade, mas não pode olhar para trás porque então, com a descoberta do medo, tudo  estará consumado. Resiste. Tenta andar mais rápido, sem conseguir. Está perdida sua noção de velocidade. Impossível andar mais rápido do que isso. E os passos se aproximam, inventando pressa. Eles vêm de trás dos muros e das paredes, eles vêm do fundo escuro da memória. Em tropel, atropelados, muito perseguidores. O coração de Alaor ribomba dentro de sua cabeça, como um sangue grosso, caudal. Nas costas, a pré-ciência da tragédia. O frio pelo lado de dentro. Atravessa a rua em fuga e disfarçadamente arrisca um olhar para trás, melhor a tragédia do que o medo dela. Ninguém à vista, apesar do medo, que não vai embora. E dos passos que nele retumbam. Há muito tempo não vê alma deste ou de outro mundo, como se a humanidade tivesse desertado. Provavelmente sua imaginação, ou eco de seus próprios passos.
A mulher seguia em sua frente, sobre a cabeça um jornal aberto, suas manchetes molhadas. Era apenas uma mulher com pressa tentando proteger-se da garoa, num dia que se dissolve numa aquarela.

Pelo menos até a esquina a marquise o protege da garoa, agora. E em casa, como será? A ruga em sua testa. Pensando o quê?, a pobre da Amanda, cuja existência tanto depende de sua presença pontual, sempre no mesmo horário durante todos esses anos. Pensando o quê?
Não, realmente ninguém. Talvez apenas o eco. Depois de um susto, nos inventamos a realidade que o justifique.
E em sua pressa, ela esbarrava nas pessoas, nos postes, esbarrava nos carros que atravancavam a rua - seu vestido amarelo inteiramente molhado. Pisou numa poça e quase caiu.
Galo cantando, Deus do céu! Galo cantando. E ele ali, ilhado num cruzamento, enquanto os filhos, em casa. Tem dificuldade para afrouxar o nó molhado da gravata. Uma ruga na testa. O mesmo cruzamento, os mesmos letreiros debaixo de um céu impreciso. É necessário encontrar um meio de sair dali: a jaula. As árvores não protegem coisa alguma, os troncos em fila, perfilados. Como no parque. Bem assim, a mesma coisa: os postes, lá, também, dedos erguidos para o céu.
Perto de seu ponto, um menino dançava no meio da rua, na frente dos carros.
Agora o tempo outra vez, o vento no chuvisqueiro. O mesmo muro todo escrito, por ali diversas vezes, estes nomes. Quantas vezes pelo mesmo lugar?
E em casa, como será? Seus filhos. Então era o eco, então. Aquela luz lá na frente. Quem sabe um rumo e poderá sair da jaula. Tomara. Suas pernas, nem sabe como continuam agüentando. Mas a tabuleta é a mesma, ele já vira. É isso mesmo. À esquerda, a rua muito escura. Por isso passou reto. Sempre passa reto, na vida. Não gosta muito de arriscar. Acaba nunca esta noite maldita!? Precisa tentar alguma coisa: as pernas. Que é isso?! Parece sirene de carro da polícia. Ou ambulância. Lá pra trás. Ou não. Como saber, depois de tudo, o que é pra trás ou pra frente?  Precisa sair deste bairro, desta vida, desta jaula imunda. 
O outro lado da rua, é isso, o outro lado da rua bóia como um pensamento no sorriso quase gelado de Alaor, que, entretanto, não se move, pois sabe que de lá mesmo foi que veio ainda há pouco.
Quando Alaor, solícito, a segurou por um braço, ela o mirou por baixo do chuvisqueiro, um olhar líquido de tanto medo, e se encolheu assustada antes de sair em fuga. Logo depois, desapareceu numa fila de ônibus, todas as cores misturadas.
A calçada arrepiava-se debaixo da garoa, estilhaços coloridos, muitos sapatos pisando sobre tudo aquilo. Todos com muita pressa de chegar, todos sempre com muita pressa, mesmo não tendo aonde chegar. Alaor também. Em sua testa, a água, o corpo inteiramente úmido. E a fila, no ponto do ônibus, quando chegou: muito grande, multidão. Perto da esquina, motoristas de vans chamando aos berros, eu bem que podia, e atravessou a rua.
A fila muito grande, sapatos molhados pisando aflitos na pressa de fim de expediente. E então a van faltava só mais um.
As ruas todas dormindo no escuro. Pior coisa é terreno baldio, como aqui, esta escuridão. Droga, justo hoje, que é dia de tanta coisa, hoje que é dia de chegar em casa na hora certa. Tudo prejudicado, sem cumprimento.  Justo hoje. Como entender? Ainda à tarde, repassava na memória, tudo, a vida transcorrendo. E agora, de que jeito? Não teria imaginado. Nem teria imaginado se fizesse algum esforço de imaginação. Nunca acreditou: fatalidade do destino - existe nada. Tanta coisa em casa, depois do expediente. Acaba nunca, esta noite! Ali, olha, aquela claridade ali. Será que? Alguém atrás de mim? Bobagem. O eco outra vez.
Trepado em suas canelas finas, sozinho, domador de feras sem jaula, aquele menino. Guinchos de freio, buzinas, janelas iluminadas: gritos. De umas imagens, apenas, ele se lembra. Umas imagens que se atropelam, descosidas. 
Ele lá, hesitante, faltava só mais um. Quando entrou e se acomodou, o motorista continuou gritando que faltava só mais um. Não se lembra com clareza, mas não deve ter demorado muito: a fila do ônibus imensa.
Então ele disse o nome do bairro. O motorista, a cabeça voltada para trás, para ele, encarando-o no escuro da van. O motorista e o sujeito do seu lado se olharam e riram. Os dois. Alaor ficou  pensando será que eu disse uma bobagem ou o nome do meu bairro é mesmo engraçado? A cara deles, o jeito todo, um arrepio. O calor por causa dos vidros fechados. Só podia. Tudo que é novo causa um pouco de medo.
Uma praça. Uma praça estúpida, de cimento e ferro, aquela ali, pela rua da esquerda. Uma praça inútil. Ninguém além destes postes, altos hirtos, agüentando a garoa no lombo. E umas árvores encolhidas, de folhas gotejantes. De nada adianta passar por ela mais uma vez.
O sujeito sentado ao lado do motorista falava. Falava com a boca muito perto da orelha do outro. Eles dois. Alaor só via a boca se mexendo. Mesmo assim, apesar de olharem toda hora em sua direção, acabou dormindo.
Mas então para que lado, se todos já foram experimentados? Os pés de Alaor fincados na calçada, as mãos engelhadas nos bolsos. O desânimo escorria-lhe pelo rosto atônito. A noite continua adormecida nas sombras das árvores e nos quintais vazios. Nem mesmo os cães, nem eles, tão atentos sempre aos restos do dia, durante a noite, nem eles para arranhar aquele silêncio imenso. Sua própria sombra oscila e ameaça desaparecer.
A cabeça pendurada no pescoço torto, o queixo amassando o nó da gravata. Com medo de babar, como de outras vezes, lutava contra o sono, mas estava desarmado. Acordou com a van parada perto do cinema, no cruzamento. Quase contente ele se lembra. A iluminação mais viva por causa da noite. Os letreiros coloridos mais coloridos. E brilhantes. A mulher gorda, que vinha no banco de trás, levou cinco minutos pra  descer. Não desencaixava.
Atravessa o ponto de interseção da cruz a passo lento, certeza alguma nas mãos ou nos bolsos. Pára na esquina fronteira, reluta.
A mocinha com cara de secretária  encolhia-se em defesa, encasulada, suando no esforço de não deixar seus joelhos encostarem nos meus nem nos do outro vizinho, o do outro lado: um desconforto. Ela, tão desamparada em sua beleza triste.
Nem assim, mudando de lado da cruz, resolve o problema de sua sombra, que teima em sumir. Poderia, pensa Alaor, poderia... mas a idéia não progride, ela também debaixo da garoa, toda encolhida. E o frio pelo lado de dentro.
Então, suada, ela começou a falar em pressa, chegar em casa. Só que falou irritada, sem muita discrição, e a mulher gorda enfiou a cabeça leonina, fulva e solene, pela janela da van e chamou a mocinha de piranha porque ela era bonita. Assim as vinganças.
O menino sorria, domador, o menino dominava. Sua blusa azul colada ao corpo era uma cor mais viva para um tórax sem as muitas vantagens da vida.
Apesar do escuro, podia-se ver que ela tinha ficado muito vermelha - a mocinha. Constrangido e sem ter o que fazer, Alaor passou a mão pela camisa, pela gravata, olhando, ver se tinha babado. Sequinha. E a Amanda, o que será?
O barulho da van o embalava? Embalava.
Então o que vinha sentado ao lado do motorista bateu no ombro de Alaor e o acordou.
Volta para a mesma esquina em busca de melhor proteção. Sim poderá escolher um rumo, uma rua, deixar que o acaso resolva seu destino.
A van parada numa rua escura, um fim de linha ou de mundo,  e só os três. Vai passando, ele dizia. Vai passando. E não sorria.
Chegou a pensar no fim de tudo, a família desamparada, Amanda que em tudo dependia de seus horários certos, as crianças. Vai passando a grana. E mexia os quatro dedos quase na cara de  Alaor, apressando-o.
Já não sente mais as pernas e os pés são duas bolas geladas, a roupa  tecida com fios de gelo.
Ou então ele dizia vai descendo, vai descendo. Ou vai pagando, alguma coisa assim. Alaor não consegue lembrar. Olhou para fora, um bairro em que nunca, nem em sonho, ele pensou, este aqui. Mas aqui?! E o sujeito de boca que se movia repetiu: vai passando, ou vai descendo, ou vai pagando. Impossível saber.
Pagou rápido e desceu, porque ainda não sabia que a noite é uma escuridão tão prolongada, onde a memória flutua com tanta dificuldade.
                                                      *



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