sexta-feira, 18 de setembro de 2015

CONTOS CORRENTES

Fazenda Nova América


                                                     Alexandre Nobre*

O ônibus chega num repente, expelindo uma nuvem demorada de poeira e fumaça. Dentro, os poucos passageiros acordados, enfastiados por tantas horas de viagem, veem surgir primeiro a cabeça magra do homem, depois o corpo seco e ossudo, metido num paletó puído, da mesma cor estéril do restante da paisagem. Em seguida sobem as duas meninas. Faz-se um gemido demorado, o motor dá um tranco e o ônibus parte, sacolejando pela estrada pedregosa.

Sentam-se em fileiras paralelas, o homem ocupando duas poltronas e as meninas nos bancos ao lado, imóveis e caladas. A imagem à janela é de desolação: nenhuma cor, nenhuma árvore, nem mesmo o menor sinal de animais pastando por ali. A estrada é só um braço de terra vermelha, poeirenta, aberta no meio do nada. O mundo árido e resignado. Dentro do ônibus tampouco é diferente: não há conversas ou risadas, os movimentos são mínimos, quase imperceptíveis.

De tempos em tempos o homem remexe-se nos bancos gastos, passa a língua pelos lábios ressequidos, testa enrugada, lançando um olhar esvaziado para o azul terrível do céu. As meninas permanecem quietas. Nenhum gesto. Uma delas, a mais velha, às vezes arrisca um olhar mais atrevido para os lados, enquanto alisa com o dedo indicador o vinco do vestido florido. A outra mantém os olhos fixos para frente, duas plaquinhas coladas no painel do ônibus: “Família Maglini” e “Até aqui nos ajudou o Senhor”. Os vestidos das meninas, um vermelho; o outro, verde, ambos com flores estampadas, destoam do restante da paisagem. Depois de algumas horas começam a surgir as primeiras casas à beira da estrada.

Os três são os únicos a desembarcar na rodoviária minúscula, semi-deserta. O pai segue andando na frente, acompanhado de perto pelas duas meninas. No caminho, enquanto atravessam a cidade, as poucas pessoas na rua se voltam para olhá-los. Primeiro observam as meninas, com seus vestidinhos exagerados, e depois fitam demoradamente o pai. O homem mantém-se sério, sustentando-se contra a luz branca do dia, mas seu rosto está marcado, com uma expressão de derrota que vem do fundo dos olhos. Quando passam pela porta da mercearia as filhas se agitam. O homem apalpa com a mão o bolso interno do paletó, mas logo desiste e recomeça a andar.  

A plaquinha de madeira pendurada no tronco de uma árvore indica a entrada: Fazenda Nova América.  Seguem pela alameda aberta em meio ao canavial, com flores amarelas plantadas dos dois lados. Quem os recebe é o capataz.

Ali mesmo, na varanda, ele avisa: o coronel andava muito ocupado. E não havia mais interesse em arrendar terras para o lado onde eles moravam. O homem insiste que precisa vê-lo. Contrariado, o outro dá de ombros: se quisessem teriam que esperar.
Aponta com o queixo para fora e acrescenta:
- Mas só depois do almoço. 

Sentam-se na muretinha da varanda, o pai virado em direção à plantação, e as meninas voltadas para dentro, de frente para um imenso sofá de junco. O homem arranca uma haste de capim para ter o que morder, enquanto pensa na diferença da roça do coronel para o seu pedaço de terra esturricada, ambas banhadas pelo mesmo sol escaldante. Já passa de uma da tarde quando uma mulher vem buscá-los.     

Seguem pelo interior da casa e o homem caminha calado, imaginando se a mulher é a tal primeira, de quem já ouvira tantas e tantas histórias. Sabia que o coronel nunca fora casado, mas sempre havia muita conversa... Num momento, enquanto atravessam um corredor comprido, pontilhado por uma série de quartos, um perfume invade o lugar. Algumas portas estão entreabertas e as meninas pensam que o cheiro poderia vir de lá.     

Entram no escritório e o coronel permanece sentado, fazendo anotações, sem olhá-los. Quando ergue a cabeça parece surpreso em ver as duas meninas ali. Passa algum tempo olhando para elas, em pé, paradas, apenas alguns centímetros depois da porta. Só então é que repara no pai e faz um gesto mecânico em sua direção:
 - Muito bem, o senhor queria me ver?

O homem mantém-se inerte, olhando para o chão, e o coronel repete a pergunta, um pouco mais alto agora, com certa impaciência. Após algum esforço a fala do homem chega titubeante, desafinada:
- É que as coisas estão difíceis.

As meninas não tiram os olhos do coronel: um homem grande, de rosto vincado e sanguinolento, as mãos enormes pousadas sobre a mesa como dois pequenos animais. Ele também olha um pouco para elas, um pouco para o pai, as sobrancelhas grossas, franzidas sobre uns olhos muito vivos. Começa a falar:
- Acredito que o meu capataz já lhe adiantou que não tenho interesse em arrendar mais terras. Daqui até o final do ano...
- Sim senhor, já disse sim.

O homem sustenta-se em pé, olhando para os próprios sapatos, marrom-desbotado, como se falasse com eles. O coronel fica agitado, ajeita-se melhor na cadeira, e joga o corpo enorme contra o encosto dobrável.
- Então? – pergunta.

 O homem desmorona: sabia que o momento não era bom, mas com a terra do jeito que estava, tão pouca e torrada de sol; já não era fácil tirar o sustento para dois, para quatro então, estava ficando impossível. Ainda mais agora, que ia vir mais um, imagina, a mulher grávida de novo, e ele não sabia mais como iria se virar. O coronel que não se enganasse, ele não era desses mal-agradecidos, sabia que o coronel socorria quando era possível, até onde o senhor nos ajudou as coisas sempre andaram bem, mas agora fazia tempo já que o coronel não arrendava mais terras, e ele precisava, implorava qualquer ajuda...

As meninas correm os olhos pelo escritório: os quadros pendurados na parede, a escrivaninha e a cadeira de couro branco, muitas fotos de gado espalhadas pelas prateleiras, enfeites, duas cadeiras e um sofá em que elas não se atrevem a sentar.

O coronel sossega, mantêm-se bem acomodado, leva uma das mãos ao queixo e coça o rosto, debruçando-se sobre a mesa. Depois faz menção de falar, mas volta a recostar-se e emudece. Olha bem para o rosto do homem, procurando seus olhos sem poder encontrá-los. Finalmente, fazendo um gesto longo, de cansaço, diz:

- As pessoas aqui são engraçadas. Vivem me pedindo ajuda – faz uma pausa e acrescenta – Mas, assim que eu ajudo, elas logo se esquecem e começam a inventar histórias, fofocas... 

Então leva novamente a mão ao rosto e esboça um movimento lento, afirmativo, olhando firme em direção ao homem. Pega um sininho sobre a mesa.

Antes de sair, o homem acena na direção das meninas, sem olhá-las. Sua voz luta para soar natural:
- Uma já tem quinze. A outra ainda é novinha, só treze, mas vai encorpar logo também. Enquanto isso pode ir ajudando nos serviços da casa. 


Quando retorna, cruzando as ruas da cidade, passa outra vez em frente à mercearia e instintivamente faz menção de olhar os doces na vitrine. Não precisa levar a mão até o bolso para sentir o grosso volume que carrega sobre peito.

Mas agora, sozinho, estranhamente não tem mais fome.    

*Alexandre Nobre é paulistano, mas reside em Ribeirão Preto, interior do estado.
Durante os anos noventa atuou como compositor e guitarrista em bandas de blues e rock e, paralelamente, publicou alguns poemas e contos em jornais e revistas da cidade e região. A partir de 2007 passou a dedicar-se à literatura, sendo premiado em diversos concursos literários do país, dentre os quais destacam-se: o Concurso Nacional Luiz Vilela 2008, de Minas Gerais, com o conto A mangueira da nossa infância; o concurso Newton Sampaio 2009, do estado do Paraná, com o conto Aila; o Concurso Maximiano Campos, do Recife 2007, com o conto A praia; e o concurso de contos Prêmio Ignácio de Loyola Brandão 2011, com o conto Fazenda Nova América, dentre outros.

A mangueira da nossa infância é o seu primeiro livro publicado.

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