O ônibus chega num
repente, expelindo uma nuvem demorada de poeira e fumaça. Dentro, os poucos
passageiros acordados, enfastiados por tantas horas de viagem, veem surgir
primeiro a cabeça magra do homem, depois o corpo seco e ossudo, metido num
paletó puído, da mesma cor estéril do restante da paisagem. Em seguida sobem as
duas meninas. Faz-se um gemido demorado, o motor dá um tranco e o ônibus parte,
sacolejando pela estrada pedregosa.
Sentam-se em
fileiras paralelas, o homem ocupando duas poltronas e as meninas nos bancos ao
lado, imóveis e caladas. A imagem à janela é de desolação: nenhuma cor, nenhuma
árvore, nem mesmo o menor sinal de animais pastando por ali. A estrada é só um
braço de terra vermelha, poeirenta, aberta no meio do nada. O mundo árido e
resignado. Dentro do ônibus tampouco é diferente: não há conversas ou risadas,
os movimentos são mínimos, quase imperceptíveis.
De tempos em
tempos o homem remexe-se nos bancos gastos, passa a língua pelos lábios
ressequidos, testa enrugada, lançando um olhar esvaziado para o azul terrível
do céu. As meninas permanecem quietas. Nenhum gesto. Uma delas, a mais velha,
às vezes arrisca um olhar mais atrevido para os lados, enquanto alisa com o
dedo indicador o vinco do vestido florido. A outra mantém os olhos fixos para
frente, duas plaquinhas coladas no painel do ônibus: “Família Maglini” e “Até
aqui nos ajudou o Senhor”. Os vestidos das meninas, um vermelho; o outro, verde,
ambos com flores estampadas, destoam do restante da paisagem. Depois de algumas
horas começam a surgir as primeiras casas à beira da estrada.
Os três são os
únicos a desembarcar na rodoviária minúscula, semi-deserta. O pai segue andando
na frente, acompanhado de perto pelas duas meninas. No caminho, enquanto atravessam
a cidade, as poucas pessoas na rua se voltam para olhá-los. Primeiro observam
as meninas, com seus vestidinhos exagerados, e depois fitam demoradamente o
pai. O homem mantém-se sério, sustentando-se contra a luz branca do dia, mas
seu rosto está marcado, com uma expressão de derrota que vem do fundo dos
olhos. Quando passam pela porta da mercearia as filhas se agitam. O homem apalpa
com a mão o bolso interno do paletó, mas logo desiste e recomeça a andar.
A plaquinha de
madeira pendurada no tronco de uma árvore indica a entrada: Fazenda Nova
América. Seguem pela alameda aberta em
meio ao canavial, com flores amarelas plantadas dos dois lados. Quem os recebe é
o capataz.
Ali mesmo, na
varanda, ele avisa: o coronel andava muito ocupado. E não havia mais interesse
em arrendar terras para o lado onde eles moravam. O homem insiste que precisa
vê-lo. Contrariado, o outro dá de ombros: se quisessem teriam que esperar.
Aponta com o
queixo para fora e acrescenta:
- Mas só depois
do almoço.
Sentam-se na
muretinha da varanda, o pai virado em direção à plantação, e as meninas
voltadas para dentro, de frente para um imenso sofá de junco. O homem arranca
uma haste de capim para ter o que morder, enquanto pensa na diferença da roça
do coronel para o seu pedaço de terra esturricada, ambas banhadas pelo mesmo sol
escaldante. Já passa de uma da tarde quando uma mulher vem buscá-los.
Seguem pelo
interior da casa e o homem caminha calado, imaginando se a mulher é a tal
primeira, de quem já ouvira tantas e tantas histórias. Sabia que o coronel
nunca fora casado, mas sempre havia muita conversa... Num momento, enquanto atravessam
um corredor comprido, pontilhado por uma série de quartos, um perfume invade o
lugar. Algumas portas estão entreabertas e as meninas pensam que o cheiro poderia
vir de lá.
Entram no
escritório e o coronel permanece sentado, fazendo anotações, sem olhá-los.
Quando ergue a cabeça parece surpreso em ver as duas meninas ali. Passa algum
tempo olhando para elas, em pé, paradas, apenas alguns centímetros depois da porta.
Só então é que repara no pai e faz um gesto mecânico em sua direção:
- Muito bem, o senhor queria me ver?
O homem
mantém-se inerte, olhando para o chão, e o coronel repete a pergunta, um pouco
mais alto agora, com certa impaciência. Após algum esforço a fala do homem chega
titubeante, desafinada:
- É que as
coisas estão difíceis.
As meninas não
tiram os olhos do coronel: um homem grande, de rosto vincado e sanguinolento, as
mãos enormes pousadas sobre a mesa como dois pequenos animais. Ele também olha um
pouco para elas, um pouco para o pai, as sobrancelhas grossas, franzidas sobre
uns olhos muito vivos. Começa a falar:
- Acredito que o
meu capataz já lhe adiantou que não tenho interesse em arrendar mais terras. Daqui
até o final do ano...
- Sim senhor, já
disse sim.
O homem sustenta-se
em pé, olhando para os próprios sapatos, marrom-desbotado, como se falasse com
eles. O coronel fica agitado, ajeita-se melhor na cadeira, e joga o corpo enorme
contra o encosto dobrável.
- Então? –
pergunta.
O homem desmorona: sabia que o momento não era
bom, mas com a terra do jeito que estava, tão pouca e torrada de sol; já não
era fácil tirar o sustento para dois, para quatro então, estava ficando
impossível. Ainda mais agora, que ia vir mais um, imagina, a mulher grávida de
novo, e ele não sabia mais como iria se virar. O coronel que não se enganasse,
ele não era desses mal-agradecidos, sabia que o coronel socorria quando era
possível, até onde o senhor nos ajudou as coisas sempre andaram bem, mas agora
fazia tempo já que o coronel não arrendava mais terras, e ele precisava,
implorava qualquer ajuda...
As meninas correm
os olhos pelo escritório: os quadros pendurados na parede, a escrivaninha e a
cadeira de couro branco, muitas fotos de gado espalhadas pelas prateleiras, enfeites,
duas cadeiras e um sofá em que elas não se atrevem a sentar.
O coronel sossega,
mantêm-se bem acomodado, leva uma das mãos ao queixo e coça o rosto,
debruçando-se sobre a mesa. Depois faz menção de falar, mas volta a recostar-se
e emudece. Olha bem para o rosto do homem, procurando seus olhos sem poder encontrá-los.
Finalmente, fazendo um gesto longo, de cansaço, diz:
- As pessoas aqui
são engraçadas. Vivem me pedindo ajuda – faz uma pausa e acrescenta – Mas, assim
que eu ajudo, elas logo se esquecem e começam a inventar histórias, fofocas...
Então leva novamente
a mão ao rosto e esboça um movimento lento, afirmativo, olhando firme em
direção ao homem. Pega um sininho sobre a mesa.
Antes de sair, o
homem acena na direção das meninas, sem olhá-las. Sua voz luta para soar
natural:
- Uma já tem
quinze. A outra ainda é novinha, só treze, mas vai encorpar logo também. Enquanto
isso pode ir ajudando nos serviços da casa.
Quando retorna, cruzando
as ruas da cidade, passa outra vez em frente à mercearia e instintivamente faz
menção de olhar os doces na vitrine. Não precisa levar a mão até o bolso para
sentir o grosso volume que carrega sobre peito.
Mas agora,
sozinho, estranhamente não tem mais fome.
*Alexandre Nobre é paulistano, mas reside em Ribeirão Preto, interior do estado.
*Alexandre Nobre é paulistano, mas reside em Ribeirão Preto, interior do estado.
Durante os anos noventa atuou como compositor e guitarrista
em bandas de blues e rock e, paralelamente, publicou alguns poemas e contos em
jornais e revistas da cidade e região. A partir de 2007 passou a dedicar-se à
literatura, sendo premiado em diversos concursos literários do país, dentre os
quais destacam-se: o Concurso Nacional Luiz Vilela 2008, de Minas Gerais, com o
conto A mangueira da nossa infância; o concurso Newton Sampaio 2009, do estado
do Paraná, com o conto Aila; o Concurso Maximiano Campos, do Recife 2007, com o
conto A praia; e o concurso de contos Prêmio Ignácio de Loyola Brandão 2011,
com o conto Fazenda Nova América, dentre outros.
A mangueira da nossa infância é o seu primeiro livro
publicado.
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