terça-feira, 20 de junho de 2017

ESPIANDO POR DENTRO

Esta coluna reúne análises de obras literárias escritas por Menalton Braff e publicadas originalmente em seu site. A obra analisada nesta postagem é "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto.

Título:Triste Fim de Policarpo Quaresma
Autor: Lima Barreto


PERSONAGENS PRINCIPAIS

Major Policarpo Quaresma - morador de uma rua afastada em São Januário, Rio de Janeiro aos 18 anos fora julgado incapaz para o serviço militar; frustrado, escolheu a carreira burocrática civil do Exército, ocupando o cargo de subsecretário do Arsenal de Guerra.

Adelaide - irmã de Quaresma; mulher idosa, solteirona por convicção. Ricardo Coração dos Outros - famoso compositor e cantador de modinhas, tocador de violão nos subúrbios do Rio.

General Albernaz - militar burocrata, vizinho de Quaresma; gostava de dar festas familiares de cunho nacionalista, principalmente para arranjar casamento para as filhas.

Seus convivas mais freqüentes: Almirante Caldas, também frustrado ex-não-combatente, e Major
Inocêncio Bustamante, ex-combatente da Guerra do Paraguai.

Vicente Coleoni - imigrante italiano que, beneficiado por Quaresma, veio a se tornar próspero quitandeiro.

Olga - filha de Coleoni, afilhada e grande amiga de Policarpo Quaresma; moça evoluída e inteligente.

lsménia - filha do Gen. Albernaz; chegou a ficar noiva do dentista Cavalcanti que, indo para o interior do Brasil, esqueceu a noiva.

ENREDO:

PRIMEIRA PARTE:

I- Há quase 30 anos, Policarpo Quaresma religiosamente voltava do serviço e botava o pé na porta de sua casa às 16 horas e 30 minutos, vivia só com a irmã e isolado como um monge, embora fosse
cortês com os vizinhos, possuía o hábito da leitura e tinha uma biblioteca em sua casa: livros em vários idiomas, mas sua preferências eram os nacionais. Ultimamente, porém, deixava a vizinhança alvoroçada porque passara a aprender violão, a título de defender as tradições brasileiras da modinha. Ele era, acima de tudo, um nacionalista. Andava se dedicando ao estudo do tupi-guarani, o que lhe valeu na repartição o apelido de Ubirajara. Na hora do cafezinho, dava aulas sobre o país para os colegas: geologia, poética, mineralogia, história...

II - Depois de 30 anos de pesquisa, o Major achou que já era o momento de realizar algo em prol das tradições populares nacionais. Aproveitando-se dos conhecimentos de um velho poeta, estudioso de nosso folclore, passou a participar das festas do Gen. Albernaz onde se faziam manifestações de cunho folclórico. Aprofundando-se no estudo de nossas tradições, estava começando a causar espanto. Ao receber a visita do compadre Coleoni e da afilhada Olga, cumprimentou-a chorando e não lhes apertou as mãos, sob a alegação de que assim faziam os tupinambás.

III - Durante a festa de noivado de lsménia, Genelício, pretendente de uma das outras filhas do general, chegou com a notícia de que Quaresma estava doido: mandara ao ministro um requerimento em tupi!

IV - Na verdade, o nome do Major já ganhara manchetes de jornais e se tornara pessoa ridícula porque propusera à Câmara tornar o tupi-guarani a língua oficial do país. Em sua repartição, a inveja pela notoriedade do colega fora do âmbito profissional levara os companheiros a dirigir-lhe insinuações de que ele não conhecia a língua indígena. Ao ouvir uma dessas insinuações, Quaresma, distraidamente, passou para o tupiguarani o requerimento que ele transcrevia. Ao chegar aos altos escalões, o requerimento foi objeto de censura e retomou à repartição devidamente repreendido. O chefe do escritório chamou o Major, irritou-se com ele e o suspendeu do serviço até segunda ordem. Quaresma não sentiu ódio nem revolta; era uma pessoa pura, sem ambições pessoais; teve, e em profundidade, apenas o sentimento de solidão por se perceber um diferente dos outros.

V - Quaresma foi internado no hospício carioca situado na Praia das Saudades. Visitavam-no somente Ricardo Coração dos Outros, seu professor de violão, Coleoni e Olga. Adelaide não tinha coragem de ir lá.

SEGUNDA PARTE:

I - Depois de 6 meses no manicômio, o Major voltou para casa, mas tinha ficado muito taciturno, mais do que era habitualmente. Por sugestão de Olga, vendeu a casa em S. Januário e comprou uma propriedade rural no município de Curuzu, a 2 horas de trem do Rio. Lá, junto com Adelaide e o velho Anastácio, ex-escravo, dedicou-se ao cultivo da terra, entusiasmado com a oportunidade de demonstrar a fertilidade de nossa terra. Vivia naquele ermo completamente alheio às questões políticas locais e nacionais.

II - Quinota, uma das filhas do Gen. Albernaz, casou-se com Genelício, um burocrata jovem, medíocre, mas conhecedor dos caminhos da fama, que ia fazendo carreira no funcionalismo público na área da contabilidade.

III - Olga, recém-casada - não por amor, mas por imposição social - com o Dr. Armando Borges, médico de fama, filho de um fazendeiro do interior, que se casara, por causa da riqueza do sogro, foi passar uma quinzena na propriedade de Quaresma. Ricardo também estava lá. O Major continuava a cultivar o solo, sempre adepto de teorias nacionalistas. (Por exemplo: "Terra brasileira não precisa de adubo".) Estava prosperando: além de Anastácio, modesto e discreto, uma espécie de agregado, contratara também o tagarela Felizardo. A felicidade bucólica de Quaresma começava a ter sombras: o semanário de Curuzu considerava-o um intruso, com intenções políticas sorrateiras e dirigia-lhe referências irônicas.

IV - Um ano se passara desde que o Major se tornara agricultor. As críticas a ele já não eram mais públicas. Suas maiores dificuldades eram as saúvas e os atravessadores que ficavam com seus produtos no Rio: as primeiras frustravam-lhe as safras; os últimos, os lucros. Quaresma começava a compreender o desestímulo e a preguiça do homem da roça que bebe muita cachaça e não quer produzir. Por essa ocasião, tomou conhecimento da Revolta da Esquadra contra o Governo do Marechal Floriano Peixoto. Quaresma passou um telegrama ao Presidente da República, que ele conhecia: "Peço energia. Sigo já. Quaresma".

V - A revolução havia começado; muita gente era convocada para defender o Mal. Floriano. Os velhos militares e os outros figurões apoiavam o governo visando a interesses pessoais. Mas o povo apoiava os insurretos.

TERCEIRA PARTE

I - O Major Quaresma se apresentou ao Mal. Floriano como voluntário e foi aceito: na patente de major recolheu-se a um quartel provisório sob o comando do recém-nomeado Cel. Bustamante, conhecido do Quaresma por ser freqüentador das festas da casa do Gen. Albernaz. Aliás, as festas por lá haviam se acabado porque lsmênia enlouquecera, de uma loucura mansa, depois que o noivo se fora. O "Marechal de Ferro" possuía um legião de seguidores e admiradores que se empenhavam em mantê-lo no poder. Apesar de fraco de personalidade e de mau governante, permitia atrocidades de seus assessores, o que lhe valeu a fama de forte. Para custear a campanha contra os revoltosos, os próprios voluntários estavam sendo obrigados a contribuir. Quaresma fez sua doação com a veneração de um religioso.

II - A revolta estava em andamento. No Rio, alguns tiros serviam mais de espetáculo para o público do que de luta armada: ninguém morria, os combatentes ficavam mais na ociosidade. Quaresma comandava um destacamento de 40 homens: havia adquirido um farto material bibliográfico sobre artilharia, estudava-o bastante, mas não sabia comandar um tiro de canhão. Quando o Mal. Floriano foi fazer uma inspeção, Major Quaresma lhe perguntou se já lera o memorial que lhe entregara propondo soluções para o problema rural brasileiro. O Presidente chamou-o de visionário, deixando o nacionalista decepcionado

III - Completados 4 meses de revolta, as vantagens oficiais eram problemáticas. A insurreição crescia e o Governo procurava reprimi-la com violências e crimes. Vivia-se uma época de susto e terror. As prisões se efetuavam arbitrariamente. Quaresma, desencantado com o Presidente, andava acabrunhado, denotando, mudamente, certa desesperança. Preocupado com a doença de lsmênia, levou o Dr. Armando Borges para dela cuidar. Mas nada adiantou: a moça morreu, tendo antes feito à mãe o pedido de ser enterrada com o vestido de noiva.

IV - Quaresma foi ferido numa batalha; ferimento, leve e convalescença prolongada. Quando lhe foi dada alta, a rebelião já tinha sido sufocada. Saldanha fora rendido na Baía de Guanabara. Coube a Quaresma chefiar a prisão da Ilha das Enxadas, missão que o contrariou muito. A essa altura, era um homem desiludido. Não vira patriotismo entre os "defensores" do país. Desgostara-o, sobretudo, a violência injusta contra os revoltosos, que estavam presos.

V - Quaresma resolveu escrever uma carta ao Presidente censurando a injustiça da condenação à morte, que presenciara, da turma do Boqueirão. Por causa disso, foi considerado um traidor da pátria. Prenderam-no na Ilha das Cobras, onde teve oportunidade de meditar sobre a inutilidade de seu patriotismo e de sua vida. O país que existia não era o que ele idealizara, mas um outro, feito de interesses egoístas e de mesquinharias. Ricardo tentou libertar o amigo, foi, contudo, ameaçado de morte pelo Cel. Bustamante. Apelou, então, para Olga. Esta foi, em pessoa, interceder pelo padrinho junto ao Marechal Floriano. Não o conseguiu: um dos funcionários subalternos fê-la ver a inutilidade de ela rogar por um bandido. Ela retornou para casa achando que o padrinho, tão puro, não merecia viver entre aquela gente. Era preferível que ele morresse com dignidade. Talvez por isso ou por acreditar numa mudança, ela caminhou serenamente, abandonando o prédio do Governo.

COMENTÁRIOS (segundo as idéias de Carmem Lídia de Sousa Dias)

O livro foi escrito com muita rapidez (2 meses e meio): publicado em folhetins do Jornal do Comércio, do Rio, entre 11 de agosto e 19 de outubro de 1911. Ocupa-se dos aspectos relativos a fatos sócio-históricos no tempo da presidência de Floriano Peixoto (1891-1894).

Lima Barreto, em plena maturidade, quis fazer uma obra de arte conscientizadora, sem preocupação monetária. Ele nos coloca frente a um real contraditório; somos sensibilizados de modos diversos: achamos graça, sentimos pena, temos raiva em relação ao doce, bom e modesto Policarpo Quaresma.

O tema central é o nacionalismo como valor a ser revisto. Há um confronto de patriotismos: o ufanista e abstrato do Major, de um lado; de outro, a realidade concreta do cotidiano nacional, cheio de vícios gritantes, visíveis na distribuição do poder e da riqueza. A classe média suburbana é frívola; o subproletariado se expande nos "caixotes humanos"; a população rural passa por situação desanimadora. O ufanismo pátrio de Policarpo Quaresma atravessa três fases: otimista, culminando na conquista redentora: decepcionante, principalmente para a classe média, pelas promessas inviáveis trazidas pela conquista; negativa, visto que a massa inculta, urbana e rural, se marginaliza. Os personagens também se dividem em três grupos, os raros inconformados (Quaresma, Olga, Ricardo); a maioria, que se move em pequenos universos de interesses particulares (Albernaz, Genelício, Armando Borges, Floriano Peixoto); os disponíveis para os inconformados (Coleoni, Adelaide).

Aparece um personagem coletivo: os positivistas. Alguns são verdadeiros, querem transformar a filosofia em ciências exatas; outros são falsos, ajustam suas teorias aos esquemas opressores do poder contribuindo para uma ordem na qual os inconformados devem ser eliminados. Outro elemento forte da obra é a tensão entre o protagonista e a sociedade onde ele atua. Quaresma vai se tornando gradualmente mais crítico. O ponto culminante de sua nova visão é atingido na carta enviada à irmã assim que se feriu na batalha e na perplexidade que o invadiu quando preso. "Como acabarei?", perguntava o Major e lamentava sua vida perdida e inútil. O caráter conscientizador da obra não lhe tira a poesia e o humor, centralizado no quixotismo de Quaresma.

A linguagem é popular. A ironia permanente de Lima Barreto, todavia, mostra que sua visão transcende a visão limitada do Major Quaresma. O fracasso do protagonista não fecha o horizonte do autor. Olga, no final, frustrada sua esperança de libertação no tempo em que estava, se tomou de uma sensação profética: conseguiu intuir as imensas modificações que a história trará. A afilhada sente que o sacrifício do padrinho ganha significado e segue, serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros (outros, isto é, os das classes populares).

NOTAS BIOGRÁFICAS

Nasceu no Rio de Janeiro em 1881. De origem modesta e de cor mestiça, ficou órfão de mãe ainda bem novo. Conseguiu estudar na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Seus estudos, todavia, foram interrompidos para que ele ingressasse na carreira do funcionalismo público, indo trabalhar na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Seu pai havia enlouquecido e fora internado. Por essa ocasião pós-se a colaborar nos jornais, enviando artigos, e iniciou sua obra literária de ficção. Em 1914, internaram-no num hospício por dois meses: estava viciado em álcool e a demência crescia nele. De volta às atividades, continuou bebendo e desorientado como antes, tendo que se aposentar precocemente em 1918. No ano seguinte, candidatou-se a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas foi derrotado. Internado novamente em hospício, acabou vindo a falecer em estado deplorável no ano de 1922.

ATUAÇÃO LITERÁRIA

Ficcionista, produziu romances pré-modernistas independentes, ou seja, obra desvinculada do grupo que promoveu a "Semana de Arte Moderna".

CONTEÚDO DE SUA FICÇÃO

Lima Barreto pode ser considerado como um herdeiro de Machado de Assis, mas que se perdeu em uma vida desorientada e não soube equilibrar-se no meio das novas tendências estéticas do início de nosso século. Destacou-se como romancista social, voltado para a sociedade do Rio. Sua ideologia apresentou contradições: era sentimentalmente um conservador, vindo como viera da pequena classe média de subúrbio; ao mesmo tempo, detestava os que assumiram o poder no país em 1889 e que formaram a República Velha. Ele escolheu e analisou as realidades sociais de acordo com sua ideologia. O que não significa afirmar que os fatos narrados na ficção de Lima Barreto existiam apenas para exemplificar suas opiniões subjetivas. Ele foi uma espécie de realista (objetivo, portanto) que selecionou situações favoráveis a suas idéias. Sua obra contrasta com a 'literatura sorriso' em voga no início do século XX (Coelho Neto, por exemplo). Lima Barreto levou ao riso, mas falava sério, criticando, de modo aberto, a realidade social brasileira. Ele aplicou o método realista à nova situação do país que recebia reflexos da I Guerra Mundial e passava pelas primeiras crises da República Velha. Os grandes romancistas da década de 1930 retomaram a crítica social por ele adotada.

FORMA LITERÁRIA DE SUA FICÇÃO

Pode-se falar numa duplicidade de planos nos romances de Lima Barreto: o narrativo, em que conta as adversidades que o brasileiro encontra; o crítico, em que seus pontos de vista vão sendo ilustrados e interpretados de forma bastante polêmica.. Sua linguagem se aproxima do estilo de crônica, onde o cotidiano aparece sem retórica (= oratória). Afastou-se dos modismos acadêmicos da época, descontraindo-se, 'descendo o tom', permitindo que a verdade se despisse da máscara literária dos artifícios de estilo. Essa maneira de escrever foi, logo depois, totalmente assumida pelos modernistas.

O humor, característica fundamental de suas composições, é bem brasileiro, atingindo situações de caricatura e até mesmo de chalaça (= zombaria).

OBRA

Romances: Triste Fim de Policarpo Quaresma - Recordações do Escrivão lsaías Caminha - Numa e Ninfa - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá - Clara dos Anjos.

Contos: Histórias e Sonhos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças