sexta-feira, 11 de agosto de 2017

CONTOS CORRENTES

JACI SIGNIFICA LUA
(Raquel Naveira*)    
                                                                                                
Uma história de adultério abalou minha família de imigrantes portugueses, os Figueira, em terras selvagens do sul de Mato Grosso, no início do século XX. Foi com meu tio Joaquim, o alfaiate, o infeliz marido. Tudo aconteceu enquanto ele costurava calças e paletós, tão franzino, olhos verdinhos, mãos alisando sedas. Tio Joaquim casara-se com Jaci, uma paraguaia de  longos cabelos negros. Ela lembrava a índia de uma antiga canção: “Índia seus cabelos nos ombros caídos/ negros como a noite que não tem luar/ seus lábios de rosa para mim sorrindo/ e a doce meiguice desse seu olhar”. Jaci era índia de pele morena, paraguaia da fronteira, filha da nação tupi. Tio Joaquim foi o branco de coração apaixonado que guardou toda vida o seu rosto fotografado no peito.  Jaci significa Lua. Jaci herdou da lua o comportamento estranho, caprichoso, cheio de fantasia. O aluamento. Os tons de prata na face iluminada. A mania de se esconder. Tiveram duas  filhas: Maura e Maria Luísa. Franzinas e aluadas. Maura, a filha mais velha, de vinte anos, casara-se com Helinho, filho do dono do cartório do município de Amambai, moço rico e educado. Tinham um filhinho, na época com menos de dois anos.
                                                                                                                           
Como minha tia Jaci insinuou-se para o genro Helinho? Terá sido na calada da noite, quando a casa estava silenciosa e todos dormiam? Terá usado um roupão branco, cruzado as pernas e mostrado as
carnes rijas e claras como pedaços de lua? Afastou dos olhos escuros a negra cortina de cabelos?
Ou terá sido meio no ar, para preencher o vazio, dar colorido a uma rotina miúda, o marido sempre absorto sobre a máquina de costura? Terá sido por sonho de aventura, futilidade, vontade de ser desejada, de entrar no terreno proibido, onde se desnudam véus e rolam cabeças em bandejas?

Não sei. O certo é que, desde menina, ouço essa história, muitas vezes sussurrada atrás das portas, entre gemidos e lágrimas. Jaci e Helinho fugiram levando junto o filhinho de Maura. Tio Joaquim ficou prostrado, perdido, enlouquecido, cheio de tiques. Maura foi embora para o Rio de Janeiro, onde mais tarde fez uma nova família e nunca mais voltou a Mato Grosso. Maria Luísa, com apenas quinze anos, isolou-se nos fundos da casa da rua 13 de maio, numa edícula, onde chovia e ventava muito.

O menino, filho de Maura e Helinho, ainda adolescente, nadando no rio Aquidauana, foi engolido por um redemoinho de pesadas folhas. O corpo todo picado de peixe.
Jaci e Helinho, uma década mais tarde, morreram num acidente de carro na estrada que ia de Dourados  a Campo Grande. Dizem que estavam correndo a duzentos por hora. Sangue e destroços.
Jaci: satélite e bólido.
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Maria Luísa estava sempre alegre. Mesmo sozinha morando naquela edícula, atrás da casa da rua 13 de maio, onde chovia e ventava muito. Parecia olhar para as situações difíceis e dizer: “Se não consigo passar por cima de você, vou passar pelo lado; se não conseguir passar por baixo, vou atravessar você ”. Nunca falava palavras de desencorajamento, de preocupação ou de derrota. Talvez tenha compreendido que para ter força sobrenatural para viver, depois daquele golpe que sofrera, era preciso estar relacionada com Deus. E, além do mais, era engraçada, gostava de contar casos, piadas de portugueses, com um modo expressivo de falar e gesticular, a gargalhada fácil, o sorriso largo, a cabeça balançando os cabelos negros e lisos.

Teve uma vida de ascensão: casou-se com um jovem estudante que se formou médico. Estava sempre ao lado dele. Era uma espécie de secretária, enfermeira, gerente. Comprava, construía, reformava, decorava, diligente em mil tarefas. Mãe dedicada de dois filhos que tratou sempre com mão de ferro e orientação segura. O marido admirava sua Maria, não concebia a vida sem ela.

Como de repente o câncer tomou conta de seus tecidos, de seu estômago, de seus ossos? A princípio eram indigestões aliviadas pelo vômito, depois porções microscópicas do câncer foram transportadas pela corrente sanguínea a outros pontos do organismo, num processo de metástase. Algo ruim e misterioso penetrou em suas células, um agente estimulante desconhecido que excitou e iniciou um processo de crescimento incontrolado, que se transformou num tumor maligno. Seria um vírus? Uma moléstia parasita? Uma infecção? Uma recordação funesta? Uma maldição hereditária?

Fui vê-la depois de uma série de sessões de radioterapia. O chumbo e o gás mostarda haviam impregnado em sua pele e ela estava careca. Havia perdido os cabelos negros de paraguaia. Que violência, que loucura, que desespero, que humilhação podem deixar uma mulher careca? Minha alma  se dilacerou com sua amargura exposta. Ela parecia uma rainha prestes a ser guilhotinada por sua rival, uma prisioneira tocando violino num campo de concentração. Mas continuava engraçada, espalhafatosa, enquanto me mostrava uma caixa com lenços, turbantes, perucas que usaria em festas. E ria...como se tudo fosse uma divertida brincadeira.

De repente, ficou séria. Fez questão de me mostrar o seu álbum de casamento, onde eu estava tão elegante num vestido xadrez de preto e branco com flores vermelhas no decote. “_Lembra-se desse vestido?”, perguntou. “_Guarde essa foto naqueles seus álbuns da antiga Lusitânia” e riu. Sabia que eu era uma espécie de guardiã das lembranças da família.

Ficou séria outra vez. O tom de sua voz era de grave confissão: “_Lembra do que aconteceu com minha mãe, Jaci, que fugiu com o genro, levando o neto? Você acha que ela foi corajosa? Meu pai e minha irmã transtornados, enlouquecidos. Coitadinha da Maura. Acabou que eu quis morar sozinha, naquela edícula da casa da rua 13 de maio, onde chovia e ventava. Você ia sempre lá me visitar com seus avós. Os titios me deram muito carinho, muito apoio. Foram um esteio para mim. Você lembra?”
Maria Luísa nunca tocara naquele assunto comigo. Não assim, tão claramente, com detalhes, a voz confessando, sussurrando, uma lágrima escorrendo pelo canto do olho.

Riu, sacudiu os ombros, nem sabia porque estava me dizendo tudo aquilo, tantos anos já passados. Abriu a cortina, olhou a lua. “_ Jaci significa lua, sabia? Minha mãe se chamava Lua. Anoiteceu tão depressa.”

Despedimo-nos com um longo e último abraço. Saí. Entrei no carro. Respirei fundo. É mesmo. Anoiteceu.


* RAQUEL NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco, onde deu aulas no Departamento de Letras por 19 anos. É Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dá palestras e assessoria pedagógica sobre o ensino da Literatura em todo o país. É colunista do jornal Correio do Estado. Comunicadora, apresentadora do programa literário "Café, flores e livros". Tem vários livros publicados, sendo os mais recentes: "Jardim Fechado: uma Antologia Poética", "Quarto de Artista" (ensaios) e "O Avião Invisível" (crônicas poéticas).

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