(Alice Sampaio)
Era véspera
de ano bom. Logo cedo, Dona Anita passou folhas de pitanga na casa pra varrer o
ano velho. Minutos antes da virada, o trabalho tinha que ser repetido com alfazema,
pro dia primeiro chegar com energia renovada.
A vida dela
era assim: quando não tava fazendo comida ou lavando roupa, cuidava das coisas
invisíveis que afetam lugares e pessoas. Fez isso desde pequena. Aos setenta e
tantos anos, já nem sabia mais como tinha aprendido tudo aquilo. Talvez com a
mãe, com a avó, ou com a vida.
Usava arruda
pra espantar o mau olhado, ‘quebranti’ e ‘espinhela caída’. Noite de terça, a
rua ficava lotada. A neta, Edineide, era quem organizava a fila. Sentada na
balaustrada da varanda, anotava o nome de quem chegava e depois ia chamando, um
por um. O povo esperava sentado na calçada. Tinha vez que dona Anita ia dormir
às duas da manhã. Mas não reclamava.
Tarde de
quarta, dia de Iansã, ela recebia gente com doença natural, pra curar por chá ou por banho. Quem organizava os pacientes na porta era o bisneto Josemar. Edineide
não
podia porque trabalhava de cozinheira. Os outros seis netos também tavam no serviço.
podia porque trabalhava de cozinheira. Os outros seis netos também tavam no serviço.
Dava muita
confusão. O menino inda não escrevia direito e tinha gente que se aproveitava
disso. Uma vez a moça da padaria, que se chama Mariângela, foi passada pra
trás. Josemar se atrapalhou e escreveu o nome dela como se fosse Maria. Não foi
de má fé. O coitado não entendeu direito o resto das letras e teve vergonha de
perguntar. Mariângela tinha sido a segunda a chegar, mas Maria entrou no lugar
dela. Levou uns tapas da prejudicada, mas conseguiu se safar.
Dona Anita,
que tinha uma natureza serena, nunca se conformou com aquilo. Mas não tinha
jeito a dar. Se era de noite, tava tudo organizado. Edineide organizava a fila. Se era de dia, tinha que rezar
pra confusão não ser grande com as trapalhadas de Josemar.
Quem
conseguia ultrapassar o tumulto da fila, recebia atendimento de primeira. Muito
melhor que de noite. Dona Anita ficava mais tempo rezando, depois fazia o chá
ou o banho, conforme a necessidade, e ainda ensinava as receitas pra pessoa
repetir em casa. Tudo
com calma e paciência. O modo dela de compensar a agonia da fila.
Fazia aquilo
por dedicação, mas não recusava a ajuda que um ou outro quisesse dar. Se fosse
dinheiro, guardava na lata, no fundo do guarda-roupa, pra ninguém cair na
tentação de pegar. No fim do mês, raspava até a última moeda pra pagar uma
conta secreta que ninguém sabia de quê.
O segredo fazia
parte da vida de dona Anita. Uma vez por semana, na segunda-feira, ela passava
a tarde fora. Não adiantava insistir. Era coisa que não interessava a mais
ninguém.
Aquele dia, o
da véspera, era uma quarta, mas não ia ter atendimento. Filhos netos e bisnetos
tinham vindo de longe pra entrar o ano junto. Ao todo eram mais de 60, mas ali
mesmo só tinha uns 25. A
passagem tava cara pros que moravam fora. Mesmo assim, ela avisou que no café
da noite ia dar um aviso importante. Ninguém podia faltar.
Esperou todo
mundo acabar de comer. Levantou da mesa e comunicou que no ano seguinte, não ia
precisar mais da filha e nem do neto pra organizar a fila da cura. Dona Anita tinha
aprendido a escrever.
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