domingo, 19 de novembro de 2017

ORELHA

Esta coluna, de modo geral, reúne orelhas de livros e resenhas escritas por Menalton Braff. A postagem de hoje, no entanto, traz um comentário ao espetáculo "Auto da Barca do Inferno", dirigido por Jair Correia, montada com o texto original de Gil Vicente.  
Gil Vicente não morreu

Quando se assiste a um espetáculo cercado dos maiores cuidados em sua produção e respeitando em todos os detalhes as intenções do autor, quando se assiste a um espetáculo assim é que se percebe como e por que um grande autor é grande porque é eterno. Gil Vicente, na montagem do grupo Fora do Sério, com a direção de Jair Correia, está inteiro, está vivo com tudo que lhe foi mais caro.

Mas enfim, quem foi Gil Vicente? Em 1502, um ourives do palácio foi prestar sua homenagem ao infante que acabava de nascer, o futuro rei D. João III. Especialmente para essa ocasião, escreveu o Auto da visitação, peça também conhecida como Monólogo do vaqueiro, apresentando-a na câmara da rainha, que permanecia em resguardo. O sucesso foi tal que daí para a frente o ourives Gil Vicente teria de acumular suas funções de Mestre da Balança com a produção de 44 peças entre autos e farsas que escreveu até 1536.

Gil Vicente foi um moralista, no sentido de que escrevia suas peças com o objetivo de, expondo os
principais vícios humanos, colaborar na melhoria e aperfeiçoamento da humanidade. É difícil entender a obra deste genial português sem que se entenda o Castigat ridendo mores, expressão que pode ser traduzida livremente por "Rindo, corrigem-se os costumes". Este o sentido das sátiras com que vergastou todos os tipos sociais de sua época.

Neste Auto da Barca do Inferno é visível a intenção do autor em fazer desfilar diante de nossos olhos uma grande quantidade de almas que vêm até o porto em busca de uma barca que as leve para o outro lado. Fidalgo, sapateiro, parvo, cafetina, padre, procurador, juiz, todos eles se apresentam como candidatos a uma passagem na barca do paraíso, mas , por causa de seus vícios durante a vida, vão sendo recusados. Apenas o parvo e dois cavaleiros cruzados são convidados pelo anjo. Aquele por nunca ter agido com malícia, enquanto vivo, e estes por terem lutado em favor da fé cristã. Os demais vão sendo convencidos a entrar na barca cujo capitão é o diabo.

Pois foi este o Gil Vicente que Jair Correia nos ofereceu. Houve pequenas mudanças no texto, principalmente de palavras do português arcaico que o público não poderia entender. Há palavras e expressões em um texto de quinhentos anos que, sem tradução, é impossível entender. Yeramá, por exemplo, não existe mais. No texto de Gil Vicente significa "ocasião errada", "má hora". Algumas figuras da época também foram atualizadas para que o humor de certas passagens não se perdesse. O judeu, estereótipo da Idade Média, foi substituído pelo pastor ávido por dinheiro, como muitos que andam por aí. Os cruzados são-nos apresentados na pele de um árabe e um americano (judeu?) que se engalfinham o tempo todo em que permanecem no palco. Pequenas mudanças com que saímos ganhando, pois as intenções do autor permanecem as mesmas e são apenas "traduzidas" para o espectador contemporâneo. E isso sem perda do sabor arcaico do texto original.

Um bom exemplo do respeito para com o texto original foi a permanência do verso redondilho e das rimas que caracterizam o teatro de Gil Vicente. A dificuldade de elocução dos atores é muito maior, mas é também difícil uma tradução que não afete o estilo do autor. Gil Vicente é o primeiro dramaturgo português a fixar um texto, construindo um teatro literário, destacando-se, desta maneira, da tradição do teatro medieval. Essa decisão do grupo Fora do Sério foi muito acertada e só nos merece louvor.    

Solução muito bem enjambrada foi também o anjo transformado em pura voz reproduzida em alto-falante em oposição ao diabo de corpo presente: horroroso, asqueroso. Toda vez que o anjo se manifesta, os spots projetam uma suave luz azul sobre o palco, sugerindo um ambiente etéreo e de espiritualização. O diabo é corpóreo, é matéria vil e desprezível. 

Junte-se a isso um espetáculo plasticamente muito bem concebido, com cenário apropriado e figurino muito sugestivo, e tem-se um Gil Vicente vivo, muito vivo. Imperdível.

                                                           * 

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