sexta-feira, 15 de abril de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Esperando anoitecer
                                                                                                  

O aconchego da sala se desprende do olhar grave e manso de velhos retratos de um casal de velhos, passa pelas janelas fechadas, afaga o sono macio do gato e vai enrodilhar-se num canto. Lídia suspira e volta a falar.
− Meu finado pai era homem rico. Hum! Muito rico.
Arminda escuta por escutar, por estar presente, e as palavras adejam em sua distração como fantasmas familiares.
− Tinha uma fazenda em Ribeirão Preto que era uma beleza. E outra em Barretos, sabe. Mundão de terra coberta de café. E gado. Fruta, quanto a gente queria e ainda jogava pros porcos. Mais de duzentos. Pros porcos! Dizendo assim hoje bem capaz de ninguém acreditar. Mas era. Do bom e do melhor. Quem diria que acabava morrendo na miséria, precisando ajutório dos outros! Pois morreu. Também, correndo atrás de mulher é que ele passou a vida. Jogou fora uma fortuna. Acho que já contei pra você: ele era calabrês. Sangue muito quente. Raça braba! Eu também sou meio calabresa – puxei por ele. Você não vê como de vez em quando eu viro num demonho? É o sangue. Calabrês tudo é assim: sangue quente.

Esquecida sobre o fogão, a chaleira jorra uma coluna transparente de vapor. Arminda se aflige, porque antegoza o café com leite e os bolinhos fritos.
− Homem bonito, ele, bem vistoso. Não pensa que era daqueles fazendeiros de cabeça pendurada, remendo na bunda e chapéu de palha. Ele?! Quisperança! Se vestia como um capitalista. Era um lorde. Eu me lembro de muita gente confundindo ele, pensando que ele fosse doutor. Como delegado, coronel. E pra mim até me representa que era tudo isso e muito mais. Pois morreu numa penúria de fazer dó. Até uma casa que ele tinha comprado na avenida do Estado a gente perdeu. Tudo! Já imaginou a fortuna que não vale agora? Não teve jeito! Nem sossego. Aquilo virava num demonho quando via mulher bonita. Você não vê como eu, que sou velha, ainda tenho as minhas vaidades? Pois é o sangue. Muito forte. Fruta... hum! Você nunca viu uma coisa daquelas. Que fartura! Não sei, não. Só vendo, mesmo. Depois vieram as demandas, sabe, questão de terra mal medida, cerca errada, olho gordo de gente poderosa, essas coisas. Você pensa que ele se abalou com aquilo? Quem disse! Juntou o resto que tinha sobrado no interior, veio pra São Paulo e ainda levou um vidão aqui. Aquilo é que era velho! Nunca mais. Se não fosse o desastre que quebrou a perna e a bacia dele, não sei, não. 
Demorar muito seca a chaleira. Arminda se remexe na poltrona.
− E eu, o que foi que eu ganhei com tanto sacrifício a vida toda? O cachorro do meu marido até pra morrer me deu despesa. Quem pagou o enterro dele fui eu. Se eu deixasse, decerto tinham jogado ele num buraco qualquer que ninguém mais sabia onde que era.  Pra depois me acusarem? Eu não! Mandei fazer um túmulo todo de mármore, com o nome dele gravado, numa fotografia do infame todo bonitão. Você chegou a ver ele, não é? Tinha presença, ah, isso tinha. E andava assim de mulher correndo atrás dele. O sem-vergonha, qualquer coisinha que ganhava, toca a jogar fora com a cadelada. Pra dentro de casa, minha filha, neres. Nem um vintém. Com estes braços aqui é que eu sustentei a casa. Aquele homem era um malandro refinado. Raça muito ruim de gente. Preso não sei quantas vezes por causa de jogo. Toda semana era aquilo: “Semana que vem eu tou mas é rico.” Quanto eu sofri, hum! Só eu sei. Você nem imagina, hem! Me vendo assim, com a minha idade, me arrumando como eu me arrumo, ninguém diz. Cavei esta aposentadoria com trinta anos de dureza.
A coluna de vapor se finava.
− Pois você ainda tem esta aposentadoria. E eu que não tenho nada!
O aparte desperta Lídia, que se zanga.
− Como coisa que adianta muito o que eu ganho. Não chega nem pra pagar o aluguel. E se você visse o estado disso aqui quando eu entrei...
Arminda sente que o assunto começa a fugir.
− Pois é, mas aqui dentro você é a dona. E eu, morando de favor na casa da minha filha, hem! Isso é que é pior. De meu, eu não tenho nada, e a Sula, você sabe muito bem que tipo de vida ela leva. Isso me dá um tamanho desgosto, que eu só não saio de lá porque é o arrimo que eu tenho. Uma pensão como a tua, pra mim...
Lídia se levanta fazendo menção de cuidar do café, mas volta a sentar-se.
− Você não tem, Arminda, porque foi sempre uma boba.
Bem despertas, agora, olham-se rancorosas.
− Quantas vezes eu te falei que aquilo não era homem pra ti. Um cachaceiro que nem emprego tinha. Você fosse esperta, continuava trabalhando, como eu.
Rangem as molas da poltrona. Arminda se impacienta.
− Emprego fixo ele não tinha, mas vagabundo e cachaceiro, ah, isso eu não admito.
A conversa cresce em aspereza.
− Era bom ficar em casa sem nada o que fazer, não era?
− Sei lá, a gente nunca sabe o que que vai acontecer.
Os lábios murchos de Lídia tremem de ódio.
− Uma acomodada, isso sim. Você sempre foi acomodada demais. E agora, tem uma filha que te sustenta. Bailarina! Se não fosse triste eu até achava graça. Acomodada, sim. Enquanto ela ainda arranja macho, vocês vão vivendo. Quero só ver depois. Na profissão dela ninguém para INPS.
Arminda cala-se agastada e pensando que, se tivesse um pingo de vergonha na cara, estava na hora de se despedir. Sem esperar o café. Já é bastante o desgosto daqueles disfarces: noivo, bailarina. E ainda o medo, que não se desgruda nunca. Não é maldade escarafunchar nas feridas alheias?
De um canto da sala o gato vem se espreguiçando e pula para o colo de Lídia.
− Sai, cachorro sem-vergonha! Este bandido é um ladrão bem descarado. Não é que ontem me roubou meio bife de cima da mesa? O meu almoço. Não cria vergonha, mesmo.
Arminda não sorri, como de outras vezes, nem responde. Seu quinhão da vida é que agora a preocupa.
Lídia enxota o gato e levanta-se para cuidar do serviço. Como fazia todos os domingos desde o tempo quando não sentia tanto cansaço por qualquer coisinha.
− Quer ajuda? – prontifica-se Arminda aliviada.
Como a outra responde que não, que pode deixar, ela fecha os olhos pra gozar melhor os perfumes. Os grandes momentos daquelas tardes. Sem eles talvez não voltasse depois da primeira briga com a comadre.
O tempo que ficam tomando café tem a medida das velhas ruminações. É o tempo de muitas histórias antigas, mastigadas com o bolinho. Saciadas e sonolentas, arrastam-se para o sofá.
− Se o meu finado pai não tivesse quebrado a perna e a bacia, pode ser que ainda estivesse vivo. Naquele dia eu conversei com ele um tempão sem fim. Estava de cama e eu tinha ido levar meia dúzia de maçã pra ele. Gostava! Então ele disse assim pra mim: − Minha filha, fortuna eu não tenho pra te deixar, mas o que eu tenho, isso eu já te dei: a boa educação e a honra. – Aí ele me disse: − Agora vai pra casa cuidar da tua vida porque eu estou é com sono. – Parecia que tava adivinhando. Então, quando eu ia chegando em casa, já tinha gente me esperando pra avisar que o velho tinha morrido. Que homem! Quando eu cheguei de volta na casa dele, parecia que tava dormindo, mesmo. Não tinha nem perdido a cor. Só um pouquinho mais acabado. Nem sei por que, mas decerto porque a boca ficou meio chupada. Depois, no enterro, eu queria que você visse: quanta gente! Nunca vi tanta gente num enterro! Eu vesti um vestido de tafetá, luva preta, véu preto e meia preta. Não gosto nem de me lembrar.
Arminda já fechou os olhos e tem a boca ligeiramente aberta. E chia ao respirar, mas Lídia não quer ouvir o chiado, porque resta ainda muito o que dizer.
− Já imaginou se o cachorro que me fez viúva fosse um homem trabalhador assim que nem eu? Hum... eu estava mas era muito bem feita na vida. Preocupação nenhuma. O medo, que agora eu sinto, é de ficar doente, sabe. Sofro um medo danado disso. Só da aposentadoria não posso viver. Se não são os bolinhos e os pastéis aí pro empório, o que que sobrava pra mim? Mal dava pra pagar o aluguel. Do instituto eu recebo uma miséria. Até que não é pouco, não acha? Comparando com outros tempos não é pouco. A gente se matava trabalhando, e quanto é que a gente ganhava? Olha que pra ganhar o que hoje eu ganho, era só diretor, dono de firma, gente muito rica. Só, mesmo. Pois é, mas o aluguel que eu pago agora...
As pausas de Lídia tornam-se cada vez maiores e seus lábios tremem um pouco mais.
− O meu finado pai era calabrês, acho que já te falei, uma raça de gente muito braba. Parecia um trovão quando ficava brabo. A minha mãe se encolhia toda. Só eu que não, porque eu também sou meio calabresa. Mas o finado só fazia barulho. Tinha um coração de moça. Não podia ver vivente nenhum sofrendo. Era capaz de dar até a roupa do corpo. Dinheiro, pra ele, entrava pela mão direita e saía pela esquerda. Dava dinheiro como quem dá conselho. Quando a gente falava qualquer coisa, que ele não tava pensando no futuro, então soltava aquela potência de gargalhada, eu me lembro bem, que chegava a fazer vento no bigode e dizia que tinha chegado no Brasil só com a roupa do corpo, porque até a mala dele tinham roubado na viagem, e, de mais a mais, que do mundo nada se leva. Eu penso que penso, mas nunca vou entender que tipo de homem que ele era. Eu também sou bem igualzinho assim que nem ele. Digo isto e aquilo, mas quando alguém bate na minha porta, com alguma necessidade, nunca volta de mão abanando. Agora eu sou pobre, mas já tive o meu tempo do bem bom. Sou filha de gente que foi muito rica, sabe. O meu pai morreu numa penúria de fazer dó, por causa desse gênio de calabrês. Mas antigamente, ele tinha duas fazendas: uma em Ribeirão Preto e a outra em Barretos. Fruta, a gente jogava pros porcos. Você nunca viu uma coisa assim, não é mesmo? Não fosse o acidente, não sei, não.
Enquanto as noite não chega, Lídia fala porque é a sua necessidade. Fala à sua memória gasta, inventando ouvintes. Consome o domingo ocioso no jogo de viver outra vez. Mas a noite disfarçada de sombras vai roubando-lhe o espaço, e com o fim do dia as solidões serão maiores e irremediáveis.
*


(Este conto integra a coletânea Na força de mulher, da Seiva Difusão Cultural, meu caderno de aprendiz). 

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