(Conto de Evandro Affonso Ferreira*)
Caminho mais uma vez pelas avenidas desta cidade apressurada, cuja atmosfera permanece suja. Possivelmente procuro tempo todo o imprevisto. Caminho - eu, a melancolia e seus apetrechos sombrios. Meu semblante, este sim, continua resignado. Acho que sou melancólico artificial. Seja como for, ainda tenho saudade dos meus joviais tempos de embriaguez absoluta. Hoje vivo assim: afeiçoado à ociosidade lírica; escrevendo feito agora numa mesa de confeitaria. Fingindo conjecturas: posando de escritor para moça sentada sozinha à minha esquerda. Não tem entusiasmante beleza. Pouco importa: juventude traz em si aspecto luzidio, reluzente. Olhei para ela duas, três vezes sem entusiasmo - já não encontro mais devassidão nem mesmo nele meu olhar. Sei que ela nunca será minha confidente: jovem demais para gastar tempo ouvindo retrospectivas lamuriosas. Eu? Tenho grande passado pela frente. Sim: tempo todo reatiçado pelas reminiscências. Envelhecer é olhar sempre para trás – mulher de Lot em tempo integral. Assim como os chineses veem as horas no olho dos gatos, também vi agora as horas no olho daquela jovem: já é muito tarde para mim.
* Evandro Affonso Ferreira é autor de vários romances, entre eles "Minha mãe se matou sem dizer adeus" (Prêmio APCA Melhor romance de 2010 e "O Mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotherdam" (Prêmio Jabuti Melhor romance de 2012).
Caminho mais uma vez pelas avenidas desta cidade apressurada, cuja atmosfera permanece suja. Possivelmente procuro tempo todo o imprevisto. Caminho - eu, a melancolia e seus apetrechos sombrios. Meu semblante, este sim, continua resignado. Acho que sou melancólico artificial. Seja como for, ainda tenho saudade dos meus joviais tempos de embriaguez absoluta. Hoje vivo assim: afeiçoado à ociosidade lírica; escrevendo feito agora numa mesa de confeitaria. Fingindo conjecturas: posando de escritor para moça sentada sozinha à minha esquerda. Não tem entusiasmante beleza. Pouco importa: juventude traz em si aspecto luzidio, reluzente. Olhei para ela duas, três vezes sem entusiasmo - já não encontro mais devassidão nem mesmo nele meu olhar. Sei que ela nunca será minha confidente: jovem demais para gastar tempo ouvindo retrospectivas lamuriosas. Eu? Tenho grande passado pela frente. Sim: tempo todo reatiçado pelas reminiscências. Envelhecer é olhar sempre para trás – mulher de Lot em tempo integral. Assim como os chineses veem as horas no olho dos gatos, também vi agora as horas no olho daquela jovem: já é muito tarde para mim.
* Evandro Affonso Ferreira é autor de vários romances, entre eles "Minha mãe se matou sem dizer adeus" (Prêmio APCA Melhor romance de 2010 e "O Mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotherdam" (Prêmio Jabuti Melhor romance de 2012).
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